•  Palavras Presentes

     Natal: Expedição Ford K


Assisti aos Diários de motocicleta (2004) de Walter Salles, acompanhada por meu filho, com direito ao Bar Balcão, para matar a fome e a vontade de falar sobre o filme. Meu filho me surpreendeu com uma crítica sóbria e bastante equilibrada.


Eu, apesar de mãe, continuo com algo de Mafalda (do Quino). Estava nostálgica, encantada com o filme e lembrando de minhas viagens pela Bolívia e Peru. Dois meses, com uma máquina Super 8 na mão e cheia de ideias na cabeça, que seriam relatadas e discutidas no Colégio Equipe, fonte criadora de reflexões e debates para adolescentes que sonhavam com alguma transformação social. Contive-me e ouvi meu filho. Na minha cabeça pairava a pergunta não feita: "ma, você não acha, meu filho, que este filme vai te marcar para sempre?".


Final de ano, chegamos às reuniões familiares de como organizar o Natal e o Ano Novo, motivo de angústias perenes, já que as famílias demonstram toda a sua capacidade de afeto e desafeto: mazelas singulares que desvelam a complexidade existente nesse núcleo humano e humanizador que, logo, nas ditas comemorações familiares, deixa vazar o ódio, a não tolerância, a inveja, a intriga, as rivalidades, as exclusões, enfim, rápidos sinais de alguma barbárie.


Nas negociações do Natal, o filho me aparece com um roteiro apelidado de Expedição Ford K, sairia de São Paulo e viajaria para o nordeste, atravessando parte do sertão passando por Fortaleza, depois pelo Maranhão rumo a Belém do Pará; a volta por Brasília, descendo até a cidadezinha de Paranavaí, noroeste do Paraná (onde morei até os nove anos), retorno por Maringá, Londrina, Ourinhos até Sampa.


A Expedição Ford K salvaria meu filho e meu sobrinho do Natal familiar, pois eles teriam que partir antes do dia 24 para alcançar os amigos em Fortaleza no Réveillon. Entretanto, o que mais me chamou a atenção é que esta ideia surgiu depois do filme do Waltinho, que entrou em seu universo, atiçando-o a botar o pé na estrada, ver de onde ele é, quem ele é, e o que pode significar ser brasileiro.


A mãe, mais orgulhosa do que medrosa, topou ficar recebendo noticias, via mensagem de texto de um celebrado celular. Viva a existência dos celulares! Mesmo que o nosso recado vá parar na caixa postal, não caímos em depressão ou pânico por ausência de noticias vindas do lado de lá.


A Expedição Ford K foi um banho de realidade brasileira. Sobre o nordeste, a presença da cana-de-açúcar faz-se notar em tudo, onipresente. O privado tomando arrogantemente, sem pedir licença, o espaço do público. Em Belém do Pará o susto de se ver rodeado pela floresta fechada. A natureza dominando a paisagem. Uma sensação inaugural da borda da cidade limitada pela floresta, em contrate com a cidade de São Paulo que parece não ter fim.


Na Belém-Brasília, a revelação de um país ainda por ser feito entre o norte e o planalto central. Uma rota sahabitada e perigosa. Um dirigir muitas horas sem ver viva alma. Chegar a Brasília é surpresa, o planalto com suas obras de arte arquitetônicas. A Expedição Ford K entendeu que JK abriu o país às montadoras e entre elas a Ford do Brasil.


De Brasília retornando ao Paraná e São Paulo – já uma volta a origem familiar. Netos de grande fazendeiro de café ao noroeste do Paraná, o velho Massi, que montou um império em Paranavaí. Assim, eles concluíram que do açúcar ao café, a oligarquia foi um modo marcante de organização de poder.


Uma viagem e tanto para rapazes paulistas, acostumados ao bom asfalto de nossas estradas, que se encheram de coragem para dar um bye bye mamãe, porque vamos girar pelo Brasil. Numa antiga pousada colonial, voltada para as margens do rio São Francisco passaram a noite de Natal, a céu aberto em pleno seio da mãe gentil, pátria amada Brasil.


Marina Massi