• Aproximações
Psicanálise - Cultura na SBPSP 2011/2012
EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DO SUJEITO
A vida cotidiana e o seu caráter fragmentário dão a impressão de
estar fora dos acontecimentos históricos, principalmente devido à sua
rotina e repetição. Mas, ao contrário, de acordo com Agnes Heller, "a
vida cotidiana está no centro do acontecimento histórico: é a verdadeira
'essência da substância social'". O ser humano, desse ponto de vista, já nasce na cotidianidade de seu
grupo social, e o seu amadurecimento vem do processo de constituição do
mundo interno, de suas relações objetais, da aquisição de suas
habilidades, das suas práticas, dos rituais e da interiorização do mundo
da Cultura.
O processo de interiorização é um fator de cunho psicológico, que pode nos auxiliar na reflexão sobre as vivências do cotidiano. A interiorização e a assimilação das relações sociais devem-se em grande medida à observação, imitação, introjeção de modos, gestos, valores, crenças, o que comemos, vestimos, nosso vocabulário, sentimentos etc., que dependem do lugar social ao qual o sujeito pertence e ocupa. O poder invisível e a sobredeterminação da vida cotidiana residem nessas séries de ações a que não reputamos importância, mas que de certa maneira formam o sujeito. O que é importante para nós psicanalistas quando pensamos no papel da escola na formação do sujeito? Para além do objetivo imediato da escola, que é a parte pedagógica e do desenvolvimento psicopedagógico, eu diria que se trata do lugar que a escola ocupa "dentro" da criança e na vida cotidiana dela. Não podemos esquecer que, ao entrar na escola, o dia da criança é divido entre a sua casa e a escola; o seu cotidiano é expandido e passa a incluir a escola e tudo que diz respeito a esse novo vínculo.
A socialização da criança se faz nos primeiros anos através da família, para logo em seguida ter na escola o segundo lugar de referência do seu mundo relacional. Assim, a socialização depende da personalidade e do comportamento daqueles que dela cuidarem (professores e agentes educacionais) e dos elementos inatos da própria criança e das transformações internas (processos inconscientes) que a criança vive e que vão constituindo sua própria vida psíquica e afetiva. A interiorização, diz Chodorow, "não significa transmissão direta do que está objetivamente no mundo social da criança para a experiência inconsciente do eu em relacionamento. As experiências sociais assumem variados significados psicológicos, dependendo dos sentimentos de comodidade, desamparo, dependência, amor dominante, conflito e medo que a criança tenha".
Assim, a vida emocional é constituída através da história das
relações de objeto e das interiorizações das relações sociais –
considero importante acrescentar – da ideologia vigente.
Elizabeth Both, em seu livro Família e rede social, mostra que
existe um trabalho interno que a pessoa realiza, não se tratando de um
modelo mecanicista entre o dentro e o fora, entre a realidade interna e a
externa. Diz ela que "as pessoas não adquirem sua ideologia, suas
normas e seus valores unicamente por um ato de interiorização, a partir
do mundo externo. Elas também reelaboram os padrões que interiorizaram;
elas os conceituam em forma nova, e os projetam de volta para a situação
externa".
Pierre Bourdieu é outro autor, como pressuposto, acredita que os
indivíduos internalizam as condições externas e objetivas e que através
do comportamento essa interioridade volta a ser exterioridade.
Podemos desenvolver a ideia de que interiorização das representações sociais, para ter influência sobre o comportamento do individuo, não necessitaria exclusivamente de um correlato intrapsíquico. Como o superego ou os ideais de ego, que foram instâncias tidas como responsáveis pelo processo de interiorização das normas, dos valores sociais e das ideias culturais de dada sociedade, dentro do indivíduo. Pois a estrutura do próprio aparato mental, descrita pela psicanálise, nos permite fabricar um modelo explicativo que nos auxilie na apreensão do mecanismo de interiorização da ideologia, sem que tenhamos as instâncias como única possibilidade do social na vida psíquica.
Como vocês podem notar, estamos trabalhando na borda entre os campos das ciências sociais e a psicanálise, ou seja, esta interface possível nos aponta para a contribuição que a psicanálise pode nos oferecer com a sua leitura do funcionamento psíquico e da compreensão dos fenômenos relacionais. Esta intersecção de áreas do conhecimento dialogando pode gerar novas leituras; é o que a escola necessita para dar conta de tudo que ocorre no espaço e nos vínculos que ela estabelece com as crianças – seus alunos.
Vamos avançar um pouco mais no conceito de socialização, que entendo ser o outro pilar estruturante do sujeito no mundo das relações sociais, que é inaugurado de forma organizada com a entrada da criança no mundo escolar. A escola representa para a criança a primeira experiência da ordem do público na vida cotidiana da criança. Como podemos ver, a escola ensina muito mais do que é proposto no seu currículo escolar. Ela é a porta para o mundo público enquanto a família trabalha no registro da vida privada. É a noção de cidadania que introduz com a entrada na escola. Não há como construir um país de cidadãos sem uma escola que assuma o seu papel de agente ativo na socialização de seus alunos.
Socialização Primária (Processos Inconscientes)
. Identificação com fortes laços afetivos entre as partes
. Mais resistente a erradicação
Para os sociólogos Bergman e Luckmann, a socialização primária é a
que ocorre na infância e na qual o sujeito não escolhe os seus agentes
socializadores, como, por exemplo, não escolhe a mãe nem o pai, nem a
família maior. Acredita-se que esta socialização seja a mais resistente e
profunda, pois é a norteadora da personalidade e da identidade da
criança. O sistema simbólico interiorizado durante a socialização primária
não somente define a inserção social do sujeito no presente como também
no futuro. Este sistema simbólico pode ser entendido como um guia para
uma primeira inserção do sujeito no social.
Socialização Secundária (Processos Conscientes)
. Não pressupõe altos graus de identificação
. Mais frágil
. Menos resistente a erradicação
A socialização secundária é a que vem posteriormente e ao longo de toda a vida. Ela já possui uma possibilidade de escolha do indivíduo, que se identifica com modelos, ideias, costumes etc., de modo "mais livre". Ou seja, ele não é somente escolhido, como na socialização primária, mas passa também a escolher. "Ela é qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade".
Continuidade e descontinuidade socializatória
A antropóloga Nicolaci-da-Costa afirma que os sistemas simbólicos
secundários adquiridos na socialização secundária podem se sobrepor às
socializações primárias, gerando incoerência entre ambas. É essa
incoerência que a autora chama de descontinuidade. Portanto, é a
interiorização pelo sujeito de sistemas simbólicos conflitantes em
diferentes momentos de sua biografia que exigem uma capacidade do
sujeito de integrar ou erradicar conteúdos de algum dos sistemas.
Desmapeamento
Esse é um conceito denominado pelo psicanalista Sérvulo Figueira
quando há a convivência de dois ou mais conjuntos de valores ou mapas,
como diz o autor, que são interiorizados pelo sujeito em algum momento
de sua vida que permanecem convivendo em níveis de diferentes dentro
de si mesmo. Podemos estabelecer uma correlação entre os conceitos de
socialização primária e secundária com as formulações freudianas dos
processos primário e secundário.
Cabe dizer que a socialização primária ocorre dentro dos domínios
do sistema inconsciente, ao passo que a secundária se dá no
pré-consciente, pois através do pensamento o sujeito passa a
"escolher" (função consciente, mesmo que ancorada nos substratos
primários inconscientes da socialização primária) suas inserções
sociais. Na socialização primária, a criança é mais "escolhida" do que
escolhe, como no sonho que o indivíduo não sonha, mas é sonhado; na
secundária, o adolescente ou adulto "escolhe" a que e a quem se
vincular.
Melaine Klein, com suas contribuições relativas aos mecanismos de
projeção, introjeção e identificação projetiva – mesmo que discordemos
de sua supervalorização do inato e da realidade interna quase como um
espaço independente e desvinculado do social, nos revelou esse complexo
interjogo de mecanismos inconscientes e de instâncias, em um intenso
movimento de troca entre o dentro e o fora, entre o Eu e o não Eu, entre
o interno e externo. Entretanto cabe uma ressalva, no meu entender, ao pensamento de
Klein, no sentido de considerarmos o fator externo (ambiental,
socioeconômico e cultural) presente em todas as operações mentais, até
mesmo nas delirantes, pois o substrato dessas ainda assim são
reminiscências advindas das vivências da história individual.
Em contraposição a esse excesso de valorização do inato e do interno, sem suporte na realidade externa, é que D. W. Winnicott teoriza a importância do objeto externo como fator estruturante (mãe suficientemente boa, a importância do objeto transicional etc.), e advoga a minimização do inato alertando para a necessidade de um ambiente suficientemente bom e favorável ao desenvolvimento do indivíduo. O ambiente neste caso não corresponde ao aspecto físico ou concreto da realidade externa, mas de um espaço intermediário que vai além do interno, externo ou ambiental. Trata-se da área onde esses domínios se encontram e, portanto, Winnicott descreve-o como espaço onde "experimentamos a vida", onde podemos ser criativos, o sentido de valorizar o brincar, a experiência cultural e buscarmos uma área do eu que não está dentro do corpo ou tão somente no mundo interno. Esta ampliação conceitual concebe um "espaço" para o intersubjetivo no psíquico.
É exatamente ao que a escola, como um espaço de socialização e formação, é fundamental no desenvolvimento emocional do sujeito e de toda a sua vida subjetiva. A família e a escola são dois agentes ativos no processo de socialização, pois ambas participam do interjogo complexo entre o interno e externo nesse espaço intermediário em que as relações interpessoais têm importância na formação do sujeito.
Quando me refiro à escola estou tratando primordialmente da figura do professor que, sem dúvida, é um dos agentes de maior influência sobre a criança ou o adolescente, mesmo com enorme perda que vem ocorrendo de sua autoridade sobre os alunos. O professor ainda é o adulto capaz; se não conseguir mudar, pelo menos apresenta novas possibilidades de ser e "ver" outros modos, formas, experiências aos seus alunos. Neste sentido, um professor ciente de seu papel de liderança, de acolhimento às diferenças individuais, de ensinar – antes de transmitir qualquer conteúdo – a pensar. Aprender a pensar é aprender a ver possibilidades, é não ter preconceitos ou dogmas, ao contrário, ter a liberdade de enfrentar com criatividade e muito trabalho os conflitos que o conhecimento do já conhecido e do desconhecido apresentam diante de nós.
O local e os recursos para o aprendizado têm sua função e importância. Mas sabemos que para o desenvolvimento do amor ao conhecimento, à ética e ao aprendizado do convívio com outro se dá fundamentalmente através dos agentes: família e escola (professores); não simplesmente pelos recursos materiais.
Vários psicanalistas pós-freudiano nos presentearam com preciosas
contribuições. Embora não sejam desenvolvidas neste trabalho, merecem
ser apresentadas, estudadas e tratadas nessa interface Psicanálise e
Educação, pois só temos a ganhar com duas observações e teorizações. Falar no âmbito das políticas públicas é um desafio imenso ao
psicanalista, que trabalha cotidianamente em um enquadre delimitado, na
escala do singular. Mas é fato que a partir de Freud muita coisa mudou
no modo de entender a esfera do psíquico no ser humano, e mudou em
escala para além do singular. Dá para arriscar dizer que a psicanálise e
suas concepções influenciaram o mundo em uma escala maior – a da esfera
pública.
Para finalizar, gostaria de afirmar que contribuir na constituição do sujeito/cidadão é o nosso grande desafio, do futuro do Brasil, "lugar onde vivemos".
Marina Massi
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